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Fala, Professor

Português Jurídico: Uso do tratamento doutor

A origem do tratamento “doutor”

O uso de doutor geralmente provoca dúvidas e, algumas vezes, calorosas discussões (principalmente entre advogados e servidores públicos). Acredito que isso ocorra principalmente por influência do pensamento latino. Basta analisar a linguagem jurídica nos países latinos e nos países anglos para observar o exagero no rebuscamento em idiomas neolatinos.

Pergunta comum que recebo é quem deve ser tratado por doutor no Brasil. Alguns já perguntam com a certeza de que devem ser tratados assim e apresentam argumentos a favor. Outros me perguntam com a mesma certeza de que há exagero no tratamento. A simples busca na internet é insuficiente, pois há diversas páginas que fazem citações sem compromisso algum com a verdade.

Para responder de forma imparcial, apresento estudo dedicado sobre a origem e o uso atual do termo. Umberto Eco nos ensinou, por meio da semiótica, que interpretamos fatos e experiências com base nos limites de nossa própria percepção e identidade. Minha intenção é colaborar com argumentos racionais e fundamentados sem tender a vertentes ideológicas ou classistas e interpretar com base na realidade. Abordarei a origem da palavra, seus usos históricos, sua ampliação de sentido e os atos normativos que determinam o tratamento.

 

Origem da palavra

O termo doutor tem origem na raiz indo-europeiadok-, que se transformou no gregodokein (formou palavras portuguesas como dogma, ortodoxia, paradoxo, didática) e no latim docere (com o sentido de ensinar: docência).

O termo doctoris surgiu do latim docere e era usado para indicar quem ensina. Diversos idiomas ocidentais apresentam a mesma origem: doctor (inglês e espanhol), docteur (francês), dottore (italiano), doktor (alemão).

 

Doutor como título acadêmico

Registros históricos indicam o uso do tratamento doctores sapientiae aos que promoviam conferências públicas sobre temas filosóficos (a filosofia, no passado, abrangia diversas áreas do conhecimento).

O uso do tratamento doutor como título acadêmico começou nas universidades medievais (Bolonha, Salamanca, Oxford, Cambridge, Sorbonne, Coimbra) para designar formandos que se tornavam aptos a lecionar (até então mantinha-se o sentido de ensinar). Surgiram, inicialmente, doctores legum (doutores em direito), doctores decretorum (doutores em direito canônico) e depois doutores em medicina, em gramática, em lógica e, já no século XV, Oxford e Cambridge conferiam o título de doutores em música.

Dois títulos acadêmicos de doutor surgiram sem a necessidade do vínculo com o ensino e são outorgados até hoje por mérito na área de atuação da pessoa: doutor honoris causa (em diversas universidades desde o período medieval) e, no Reino Unido, higher doctorates (geralmente a ex-alunos ou membros do corpo docente).

 

Doutor para quem fez doutorado

O título doutor é designado no Brasil a quem concluiu doutorado. O Manual da Presidência da República e o Manual de Atos Oficiais Administrativos do Supremo Tribunal Federal esclarecem que “doutor não é forma de tratamento, e sim título acadêmico. Como regra geral, empregue-o apenas em comunicações dirigidas a pessoas que tenham tal grau por terem concluído curso universitário de doutorado”.

Decisões judiciais que tratam do assunto também não reconhecem o uso do título fora do universo acadêmico. Algumas vezes encontramos na imprensa notícias como a do juiz no Rio de Janeiro que entrou com ação no Tribunal para que todos os funcionários do prédio em que mora o tratassem por doutor (perdeu a ação).

A própria OAB determinou em processos internos (E-3.652/2008; E-3.221/2005; E-2.573/02; E-2067/99; E-1.815/98) que é desaconselhável o tratamento doutor antes do nome ao advogado que não possuir a titulação acadêmica correspondente.

A Lei 8.906, de 4 de julho de 1994, dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil e não faz referência sobre o uso de doutor em momento algum. O art. 6º esclarece o tratamento para advogados da seguintes forma:

 

Art. 6º Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos.

Parágrafo único. As autoridades, os servidores públicos e os serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho.

 

Textos normativos oficiais são explícitos ao indicar que apenas é doutor no Brasil quem concluiu doutorado. O doutorado brasileiro exige que o participante já tenha concluído mestrado, cumpra as etapas de estudo do doutorado e defenda tese original diante de banca composta por cinco outros doutores.

Os requisitos para obtenção do grau de doutor, no entanto, variam de país para país. A Itália (desde 1938) e Portugal (Decreto-Lei 115/2013) determinam que basta obter a conclusão do curso de graduação para receber o título de doutor. Não é o caso no Brasil.

Nos Estados Unidos, por sua vez, há o doutorado tradicional por pesquisa (research doctorate) com necessidade de um trabalho extenso e original de investigação que represente contribuição ao conhecimento da área de estudo em que se insere. A nomenclatura utilizada nos países anglos é Ph.D. (Philosophiae Doctor ou “doutor em filosofia”).

 

Médico e advogado são doutores?

Sabemos que é muito comum tratarmos médico por doutor. Historiadores e linguistas indicam que o hábito provavelmente surgiu no período colonial. Embora os médicos não façam alarde sobre o tratamento, ele se tornou comum. Não há ato normativo com tal exigência. O brasileiro adotou o tratamento simplesmente.

Advogados (principalmente entre si e aqueles que ocupam função pública) procuram se tratar e serem tratados assim. No entanto, embora façam alarde sobre o assunto, o brasileiro não usa tal tratamento de forma espontânea.

Advogados costumam fundamentar o uso do tratamento doutor com base em alvará de Dona Maria, a Pia, e em Decreto de D. Pedro I. Vamos analisar de forma imparcial tanto o alvará como o decreto.

 

Alvará de Dona Maria, a Pia.

Espalha-se a ideia de que há um alvará de Dona Maria, a Pia, em que advogados portugueses deveriam ser tratados como doutores nas cortes brasileiras. Basta uma rápida pesquisa na internet e encontramos centenas de referências a tal alvará. O jurista Marco Antônio Ribeiro Tuna, membro vitalício do Ministério Público da União e ex-titular da Comissão de Reforma do Poder Judiciário da Ordem dos Advogados do Brasil, pesquisou muito sobre o assunto e declara que o alvará jamais existiu. O jurista analisou a coleção completa de atos normativos desde o Brasil colônia e nada encontrou sobre o tal alvará (tal pesquisa pode ser feita pela internet atualmente).

Eu também pesquisei na internet e nas instituições competentes (tanto no Brasil como em Portugal) e nada encontrei de real. Apenas referências sobre o tal alvará em artigos de advogados brasileiros, mas nunca o documento em si ou referência fidedigna.

O jurista destaca que, mesmo que o alvará existisse, é necessário ler o que dizem estar escrito: “advogados portugueses deveriam ser tratados como doutores”. Se ele existir (o que parece não ser verdade), o texto que citam como do alvará é sobre advogados portugueses nas cortes brasileiras e não de advogados brasileiros.

 

Decreto de Dom Pedro I

O Decreto de 11 de agosto de 1827  é responsável pela criação dos cursos jurídicos no Brasil. Trata do início dos cursos de ciências jurídicas e sociais no Brasil e detalha conteúdo, estrutura dos cursos e salário dos docentes. Em seu nono artigo afirma assim.

Art. 9.º – Os que freqüentarem os cinco annos de qualquer dos Cursos, com approvação, conseguirão o gráo de Bachareis formados. Haverá tambem o grão de Doutor, que será conferido áquelles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e sò os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes.

 

Vamos analisar o artigo nono e fazer resumo do conteúdo.

  1. Para se tornar bacharel, há necessidade de conclusão do curso;
  2. Para se tornar doutor, há necessidade do cumprimento dos requisitos a serem especificados nos Estatutos;
  3. Para se tornar lente (professor), há necessidade de se tornar doutor.

O estatuto a que se refere o texto não é o estatuto da OAB (surgiu 170 anos depois e também não faz referência ao tratamento doutor). Trata-se de estatutos das próprias faculdades. Tais estatutos foram redigidos pelo Visconde de cachoeira e pode ser consultado na íntegra na página do Planalto. Transcrevo o trecho que faz referência ao grau de doutor no estatuto.

 

1.º Se algum estudante jurista quizer tomar o gráo de Doutor, depois de feita a competente formatura, e tendo merecido a approvação nemide discrepante, circumstancia esta essencial, defenderá publicamente varias theses escolhidas entre as materias, que aprendeu no Curso Juridico, as quaes serão primeiro apresentadas em Congregação; e deverão ser approvadas por todos os Professores. O Director e os Lentes em geral assistirão a este acto, e argumentarão em qualquer das theses que escolherem. Depois disto assentando a Faculdade, pelo juizo que fizer do acto, que o estudante merece a graduação de Doutor, lhe será conferida sem mais outro exame, pelo Lente que se reputar o primeiro, lavrando-se disto ocompetente termo em livro separado, e se passará a respectiva carta.

 

O ato normativo esclarece de forma nítida que o título de doutor era atribuído após a conclusão do grau de bacharel e apresentação de teses em congregação com necessidade de aprovação por todos os professores. Em momento algum, há referência de que o bacharel receberia o título de doutor simplesmente ao concluir a graduação.

 

Doutor virou tratamento de respeito

Ouve-se com frequência o tratamento doutor como manifestação espontânea de respeito no Brasil principalmente por classe trabalhadora mais baixa. De forma natural, o brasileiro usa para denotar reverência a quem considera merecedor. No entanto, o mesmo brasileiro não gosta de usar o termo por imposição.

 

Um abraço e boa semana!

 

Marcelo Paiva

Sobre o autor: Mestrando em Linguística e pós-graduado em Português Jurídico e Direito Público, Marcelo Paiva ministra cursos em diversos órgãos e empresas no Brasil e em Portugal (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior Eleitoral, Tribunal de Contas da União, Ministério Público da União, Polícia Federal, tribunais regionais, Correios, HBO, University of Kentucky, Civic League of Boston, etc.). É autor de 32 livros e desenvolve cursos presenciais e a distância.

 

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